A recente operação conjunta das polícias Civil e Militar no Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos e reacendeu o debate sobre o poder das facções, trouxe à tona uma realidade incômoda: os grupos criminosos há muito tempo deixaram de depender exclusivamente do tráfico de drogas.
Quem imagina que o lucro do Comando Vermelho (CV) vem apenas da venda de entorpecentes se engana. Ao longo dos anos, as facções aprenderam que as áreas sob seu domínio territorial também podem ser exploradas economicamente, em modelos de negócios que copiam práticas das milícias, como a cobrança por serviços de gás, TV, transporte, e agora, internet.
Um dos exemplos mais recentes dessa nova frente de atuação é o “CVnet”, um provedor ilegal de internet controlado pelo Comando Vermelho e denunciado pelo Ministério Público do Mato Grosso (MPMT) e por investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
O que é o CVnet e como ele surgiu
Segundo o MPMT, o CVnet é um sistema de provedor de internet clandestino operado diretamente por integrantes da facção. Ele se tornou o único serviço permitido em comunidades dominadas pelo Comando Vermelho, após a expulsão de provedores legais que atuavam nesses bairros.
“Investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro apontam que faccionados passaram a controlar o chamado CVnet, provedor do crime, único liberado para ser usado em comunidades controladas pelo tráfico”, cita o relatório do MPMT.
(Fonte: mpmt.mp.br)
A operação funciona de maneira semelhante à das milícias, que há anos exploram o fornecimento clandestino de internet e TV em áreas periféricas do Rio de Janeiro. A diferença é que, no caso do CVnet, o controle vem de dentro das comunidades, sob a estrutura e proteção armada do próprio Comando Vermelho.
Expulsão de empresas e controle total
Conforme revelou o Fantástico, da TV Globo, facções criminosas em diferentes estados do país têm expulsado provedores de internet regulares, forçando o fechamento de pequenas e médias empresas que não aceitam pagar “pedágios” ou repassar parte dos lucros.
Em alguns bairros, técnicos são ameaçados ou impedidos de entrar, e apenas prestadores autorizados pelas facções podem fazer a instalação e manutenção das redes. Dessa forma, o CVnet se consolida como um monopólio criminoso, com a população obrigada a aderir ao serviço.
O morador não tem escolha: se quiser conexão à internet, para estudar, trabalhar ou se comunicar, precisa pagar à facção. Quem tenta contratar outro provedor é intimidado.
A cobrança aos moradores e a fonte de lucro
De acordo com o Ministério Público, o Comando Vermelho cobra mensalidades fixas dos moradores pelas conexões fornecidas pelo CVnet. O valor é recolhido por intermediários do grupo, em um sistema que simula um provedor comercial, mas sem qualquer regulação, segurança técnica ou garantia de serviço.
“A exploração ilegal de serviços essenciais por facções gera lucros significativos para o crime e fortalece o domínio dos bandidos sobre comunidades inteiras”, diz o MPMT.
Além do lucro direto, o controle da rede também oferece vantagens estratégicas para o crime organizado, como o monitoramento de comunicações locais, vigilância sobre moradores e coordenação de atividades internas sem depender de operadoras legítimas.
Equipamentos furtados e infraestrutura clandestina
Durante operações policiais, foram apreendidos equipamentos de rede, cabos e roteadores furtados de empresas legalizadas e utilizados para manter o funcionamento do CVnet.
Essa infraestrutura é montada de forma improvisada, com servidores e antenas escondidos em casas ou pontos estratégicos das comunidades, o que dificulta o rastreamento e a interrupção do serviço pelas autoridades.
O resultado é uma rede paralela e robusta, operando à margem da lei, uma verdadeira “internet do crime”, nas palavras de investigadores do Rio.
O modelo das milícias como inspiração
O avanço do CVnet repete a lógica que as milícias aplicam há anos na Zona Oeste do Rio: controlar territórios, expulsar empresas legítimas e impor taxas sobre serviços básicos.
A diferença é que, enquanto as milícias se apresentam como “protetoras”, o Comando Vermelho usa o temor e o controle armado como mecanismo de dominação.
Essa “milicianização” do tráfico mostra que as facções compreenderam o poder econômico de monopolizar serviços essenciais. Hoje, controlar o Wi-Fi de uma favela é tão estratégico quanto controlar um ponto de venda de drogas.
Consequências para os moradores
Para os moradores, as consequências são graves:
- Dependência total do provedor clandestino;
- Cobrança obrigatória e sem contrato;
- Serviços instáveis, sem manutenção adequada;
- Risco de investigações policiais e de apreensão de equipamentos;
- Ausência de direitos de consumidor e de liberdade de escolha.
Além disso, ao pagar pela internet do crime, muitos acabam financiando involuntariamente as atividades da facção, alimentando um ciclo de poder e influência.
Reação das autoridades e próximos passos
O Ministério Público e a Polícia Civil têm intensificado operações para identificar os responsáveis e desmantelar a rede do CVnet. Contudo, as investigações mostram que o modelo se espalhou para outros estados, o que indica uma tendência nacional de diversificação das fontes de renda das facções.
Especialistas alertam que combater o CVnet exige mais que operações pontuais: é necessário restabelecer o acesso de empresas legais, ampliar a presença do Estado e oferecer alternativas reais aos moradores, inclusive em políticas de inclusão digital.
Conclusão
O caso do CVnet expõe uma mudança profunda na economia do crime no Brasil.
Se antes o tráfico era a principal atividade das facções, agora o controle de serviços essenciais, como internet, gás e transporte, se tornou uma nova fronteira de poder e influência.
O Comando Vermelho aprendeu com as milícias: em territórios dominados, tudo pode virar negócio, inclusive o acesso à informação.


