
Nos últimos dias, um episódio envolvendo uma mulher jovem, bem-sucedida e mãe que circula entre países com autonomia e agenda própria reacendeu uma velha tensão: enquanto aplaudimos a independência feminina no discurso público, ainda cobramos do homem gestos de “poder” no bastidor privado. Entre o elogio à mulher que vai e vem sem pedir licença e a expectativa de que ele “banque”, “resolva” e “prove valor”, o vínculo vira palco de performance. A relação passa a ser menos sobre encontro e mais sobre cumprir papéis que a sociedade insiste em repetir.
Para muitas mulheres, a independência é celebrada até o momento em que transborda o roteiro antigo. A mesma autonomia que encanta pode incomodar quando desafia a fantasia ainda corrente de que um homem bem-sucedido “funciona” melhor ao lado de alguém mais disponível e dependente. Surge a régua desigual: uma mulher que trabalha, é mãe, paga as contas e decide seus caminhos pode ser lida como “fria” se mantém sua rotina, “interesseira” se aceita ser presenteada, “egoísta” se preserva tempo para si. Já o homem segue pressionado a encenar sucesso por meio de grandes gestos, controle de agenda e organização financeira. Se não faz, “faltou pulso”; se faz demais, “virou controlador”. É uma armadilha para ambos.
Quando esse roteiro toma conta, a conversa íntima se esvazia. Em vez de perguntar “o que te dá segurança?”, o casal negocia sinais: quem paga, quem convida, quem aparece mais, quem cede. O roteiro social substitui a presença consistente, silenciosa, que sustenta confiança. A consequência tem cara conhecida: ciúme, testes de lealdade, disputas por atenção, cansaço afetivo que desanima até gente que se gosta, e tudo exposto no palco virtual.
Vivemos um tempo de vínculos mais fluidos, com regras renegociadas o tempo todo, em que os papéis sociais estão sendo reinventados, expostos e questionados; isso soa libertador, mas cansa quando, a cada semana, não se sabe como devemos ser. A relação vira um jogo de “gato e rato”, um espetáculo de papéis. Porém, existe ainda um desejo básico: ser visto, reconhecido, desejado, que naufraga quando o gesto de poder pesa mais do que o gesto de cuidado. Em palavras simples: presença vale mais do que espetáculo.
Nada disso significa que o amor precise de regras rígidas. Significa só que relações adultas pedem combinados claros e uma dose de realidade. A relação funciona melhor quando as expectativas são ditas. De outro lado, quando o ciclo já está viciado, com punição silenciosa e cobranças veladas, pedir ajuda profissional não é fraqueza: é maturidade.
O caso que dominou as manchetes não é sobre duas pessoas específicas: é um espelho do nosso momento histórico. Ele expõe o conflito entre um ideal de igualdade que avança e um imaginário social que ainda premia, de modos diferentes, homens e mulheres. A mulher bem-sucedida e mãe continua mais observada e julgada; o homem bem-sucedido continua cobrado a provar que manda. O resultado são relações que discutem status, não sentimentos e, por isso, se desgastam rápido.
No fim, o que vemos na mídia e na internet é reflexo desse contexto: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? É a velha questão do ovo e da galinha. Talvez sejamos tão atraídos por essas notícias porque elas nos fazem encarar o que há de mais intrínseco em nós, inclusive o que ainda não conhecemos. E o roteiro dessa novela, como o das nossas vidas, está longe de acabar: com o pedido público de desculpas do homem bem-sucedido, abre-se apenas um novo capítulo.
Opinião
Por Laura Almeida Diniz, psicóloga e psicanalista | @lauradinizpsi



